3 de janeiro de 2013

A Angústia do Apanha-bolas no Momento do Livre Directo



Tirando as dificuldades em conseguir assistir a jogos de futebol de uma equipa que usa camisolas às listas verdes e brancas horizontais e que não é o Celtic de Glasgow, está tudo bem comigo, dos vários pontos de vista. O mundo continua esse sítio estranhamente habitável para o qual a literatura vem há milhares de anos arranjando formas de o caracterizar, tal como as outras artes o têm feito e algumas delas, como a música, por exemplo, até com muito melhores resultados, do ponto de vista. Mas a literatura fica melhor na estante e por isso, e só por isso, muita gente acredita que é ela a arte que tem mais para nos dizer sobre a vida das pessoas. Eu, que superei essa crença na literatura mais ou menos na altura em que percebi que não poderia ser futebolista profissional, titular do Sporting e herói dos putos que jogam à bola na rua, dou essa epifania como uma das mais produtivas para a saudável prossecução da minha vida, sob vários pontos de vista. A partir dos 30, até um surdo percebe que A Sagração da Primavera diz mais sobre o êxtase do que o Debaixo do Vulcão ou que o Requiem Alemão do Brahms diz mais sobre a morte do que toda a obra do Hemingway. E poderíamos continuar, do ponto de vista. A literatura está cheia de imagens, descrições, muito esforço que há muito tempo muita gente tem devotado à descrição das coisas, não porque isso seja interessante ou porque haja necessidade, mas porque quem a isso se dedica não tem mais nada para fazer, do ponto de vista. Não quero com isto dizer que deixei de ler ou que não goste de ler. Continuo a ler e a gostar de ler, mas sabendo muito bem o lugar que a literatura ocupa na minha vida – o quarto, a seguir às gajas, à música e ao golfe (a ordem varia consoante os dias). Do ponto de vista, claro. Enquanto me ausentei do blog para ir mijar, tendo demorado um pouco mais do que o costume, o mundo, o tal que os escritores tanto gostam de o descrever, permaneceu o mesmo: trágico visto ao longe e cómico visto de perto (não sei se o adágio é assim, mas é assim que eu o vejo). O suposto fim do mundo, como quase todas as pessoas inteligentes entenderam, foi apenas mais um pretexto para jornalistas histéricos perderem tempo a ouvir o que têm para dizer os malucos que por aí se passeiam sempre disponíveis para opinar nestas ocasiões. Não foi com grande espanto que li que muita gente tinha ido não sei para onde por causa do fim do mundo, previsto numa dessas patéticas profecias às quais os tontos de serviço dão sempre muito crédito. Quando quero saber as tendências Outono-Inverno ou Primavera-Verão da política mediática (versão esquerda-chique) presto sempre atenção ao que os músicos, pelo menos a grande maioria deles, têm para dizer, do ponto de vista. Apenas para ver se me instruo sobre as coisas, ouvindo cabeças que se fartam de pensar sobre causas, injustiças deste dilacerado planeta que destruímos com a nossa prática consumista, capitalista e essas merdas que essa malta gosta de atirar para cima da mesa com a força de quem lança um ás de trunfo. Mas eu, do ponto de vista, já nem para me rir presto atenção a isso; sou daqueles que só se ri das piadas que têm piada, do ponto de vista. Tive também a oportunidade de ficar a conhecer o escritor Nuno Camarneiro, um destes dias, numa pobre entrevista televisiva conduzida pela Ana Lourenço – Ana, já te vi fazer melhor – sobre a vitória num desses concursos American Idol para escritores, com um livro chamado Em Cima de Alguma Boazona, perdão, fiz confusão, o livro do Camarneiro é Debaixo de Algum Céu, espero que ele não se ofenda com esta minha falha. Mas Em Cima de Alguma Boazona soou-me bem, do ponto de vista. A entrevista foram aí uns quinze minutos dos habituais clichés do jovem artista sensível e preocupado com tudo o que lhe passa à frente do nariz, entrevista enfadonha onde deu para saber que o escritor “está fascinado com a complexidade das pessoas”, “sente um apelo interior que o leva a escrever” e “não tem certeza sobre o que pensam os homens”, ou seja, a leste nada de novo: mais uma estrela no firmamento, mais um para opinar sobre as coisas do mundo, mais um a encher as prateleiras da FNAC e deliciar os basbaques do mundo da cultura. E o ponto de vista, claro. Houve mais uns tarados que andaram aos tiros às pessoas nos EUA, para praticar o seu deporto escolar favorito – o tiro às pessoas que estão por perto. Os Américas já se foram habituando; se um gajo leva a mochila com a PSP, o iPad, o telemóvel, o Donut, o hambúrguer duplo e a lata de Coca-Cola, porque é que não há-de levar uma arma também? Se até o Pacheco Pereira leva uma espingarda para o estúdio da SIC, porque é que grunhos cheios de borbulhas na cara não hão-de poder levar uma Walther para a escola? Vi mais umas quantas notícias na net mas já me esqueci de que falavam, por isso não importa, do ponto de vista. Cheguei a pensar colocar aqui o tempo que fiz na S. Silvestre de Lisboa, só para vos humilhar, mas não o faço porque não quero que vocês saibam quem eu sou. O anonimato é das melhores coisas que um gajo como eu pode desejar: toda a minha fulgurante carreira de dimensão planetária, que venho construindo nos vários saberes que interessam à humanidade - da Tasmânia à Amazónia - tem sido construída na base do anonimato, arma que eu já não dispenso e que só me trás vantagens, materializando-se em recusas sistemáticas que faço a todos os convites para fóruns, colóquios, debates e merdas assim em que não pagam. E, se for a pagar, só vou se pagarem bem. Vem isto a propósito já nem sei bem de quê mas também não interessa, do ponto de vista. O que é certo é que tenho cada vez mais dinheiro a receber e cada vez menos paciência para o cobrar. Fodido está quem tem a receber e não quem tem que pagar. Tenho também a informar que aproveitei o melhor da época natalícia, a comida, como já vem sendo habitual há muito tempo: fantástico o altruísmo de algumas pessoas que abrem garrafas de vinho daquele e servem pratos de confecção caseira daqueles. São gestos destes que ainda nos fazem suportar esse carnaval a que chamam natal, do ponto de vista. Tinha mais merdas para dizer mas estou com sono: vou dormir. A angústia do puto está na ansiedade de vir a saber se vai festejar um golo ou dar a bola ao guarda-redes para ele marcar pontapé de baliza. Do ponto de vista, caralho.

5 comentários:

  1. a música fica muito bem nas estantes (não existe visão mais sublime que a visão de uma bela "torre das canções")
    a nina simone a cantar o the house of the rising sun no nina simone sings the blues (só porque é o que "roda" agora) vale mais que todas as lágrimas derramadas na "noite de cristal"
    exageros à parte... gostei das prioridades, sob todos os pontos de vista (smile)

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    1. AM,
      Para mim (pretendente a caixeira do Pingo doce)
      the rising... a melhor versão está no nick :)))

      a melhor da simone é aquela que só uma pobre alma como a minha compreende (https://www.youtube.com/watch?v=GUcXI2BIUOQ:)
      AM, não seja choramingas :)))

      Capt,

      A música é de todas as artes a mais fácil de nos fazer tocar o céu para isso basta ouvido.
      Mas a leitura :))) ah! a leitura :) é a que nos ensina a caminhar nas pedras (quer dizer para quem sabe ler)

      respeito o anonimato e até é muito engraçado :)é como se jogasse à cabra cega :)ou ao quarto escuro :)
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      bom tenho de ir andando com a quase certeza que volto

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    2. Ora aí está uma frase: "tenho de ir andando com a quase certeza que volto".

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  2. Boa tarde,
    Um bom ano de 2013.

    Ao ler este texto depreendo uma certa angústia de quem não sabe o que dizer :)

    heheheheh
    há presente no nick

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    1. Nada disso: eu sei sempre o que hei-de dizer e, quando não sei, fico calado.

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